Quando eu era velha, ganhava medalhas e certificados de primeira aluna da classe. O boletim estrelado não era fruto de muito estudo e dedicação, preciso esclarecer, mas de uma certa tendência a não me distrair com facilidade como acontecia com as demais crianças. Eu tinha uma concentração de gente velha. Prestava atenção na aula, fazia as tarefas de casa e sobrava mais tempo para brincar. E ler, fazer tricô, crochê, cozinhar. Porque eu era uma criança velha, uma criança-velha, uma menina-vó. ... [+]
Porque sim. Para distrair, passar o tempo, brincar. Inventa, cozinha, conta, escreve, compartilha, mostra aí. Para mostrar coisas que são o que são, mas que podem revelar segredos para quem souber olhar e sentir. Para dar sentido ao mil-folhas de alegrias, desassossegos, intimidades e acontecimentos indizíveis. Para esquecer. De todos os portos, daqueles braços, dos arrozes insossos, dos bolos solados. A gente não se esquece de nada não, a gente se acostuma, como diz o Jacques Brel. Por costume. Como... [+]
A depender do interlocutor, “Cozinha pra mim?” tem o efeito de um “Me beija!“. Um pedido assim é promessa de preguiça, samba e amor até mais tarde, ou o interlúdio que sucede algumas horas no computador para terminar um trabalho, responder os correios, buscar aquela música do fim do século passado, pagar as contas… e precede o dobro dessa quantidade de horas numa soneca de pernas enroscadas em tarde de canícula que não suporta mais do que uma salada. Um... [+]
– Ça va, ma jolie cusinière? – Tô triste, Suíço. – Vem pra cá! – Ó que eu vou… – Ouiiiii!! Chego duas semanas depois dessa conversa pelo Skype meio em frangalhos, com alguns planos, casacos e biquíni (porque o tempo era incerto), cachaça e suco de maracujá na bagagem conforme o pedido. Os frangalhos, aquela troca de casca anual e necessária mas nem por isso confortável, começam a cair já pela janela do trem que passa ao redor do... [+]
… que no me pasan cuando no cocino. Sou toda coração, baixo a guarda, desarmo-me, sinto-me forte e maleável como massa de pão e, ao mesmo tempo, impermanente, vulnerável e minúscula como um ovo de codorna pochê. Posso confessar amores, derreter-me inteira, desnudar a alma, chorar na frente do moço ou da geladeira como naquele dia: descalça, pouco vestida, olhos pintados e avental azul-marinho. É que não passo de um amador: aquele que renova seu prazer, que ama uma e... [+]
Aos poucos, vou restabelecendo as coisas nesse blog, que tanto sofreu com meu descaso, com a troca de roupa provocada por ataques de hackers e com a desconfiguração de uma montoeira de coisas no caminho. Pouco a pouco vou pendurando etiquetas, as “tags”, em cada uma das cerca de 500 postagens escrevinhadas e fotografadas nesses 4 anos e pouco. Junto com as categorias (Escritos, Pitadas ou Receitas, por enquanto), são elas que vão ajudar o Leitor ou a Leitora a... [+]
Torradeiras me lembram a Dona Gerda. Ela usava um exemplar de linhas retas, bege, onde cabiam confortavelmente seis metades de pão francês (nem por nada consigo me lembrar da marca, adoraria encontrá-la novamente, mesmo que numa foto). Caso algum conviva desejasse uma torrada mal-passada, podia resgatá-la antes dela pular usando uma pinça que mais parecia dois garfos, com três dentes cada, entrelaçados feito namorados. Os lanches e cafés-da-manhã eram sempre sortidos na casa da Dona Gerda. Sortidos e perfumados pela... [+]
Em parte por mania, em parte por ter sentido as restrições da Guerra (ainda que de longe, embora fortemente no coração) Vó Nair nunca foi dada a desperdícios na cozinha, nem grandes arroubos de consumo… A casa era repleta de objetos-que-no-futuro-poderiam-quem-sabe-ter-alguma-serventia. Era um tal de tampinha de pasta de dentes, potes de margarina já sem a tinta do rótulo e amolecidos pelo tempo, latas de conserva que viravam recipientes para cozinhar ovos duros, panelas com remendos nos cabos e até mesmo furadas, feixes... [+]