Um é o cara. O primeiro, o único, o melhor. O mais solitário, um café e a conta, a saideira. Dois é casal, parzinho, duo, díptico, dupla, olhos, orelhas, mãos, pernas. Três é realeza, triunvirato, número primo, tríade, trindade, pai-filho-espírito-santo, sangue-suor-e-lágrimas. Quatro é marcação de tempo, estações, cantos do mundo, patas, apoio. Cinco é redondo, só mais cinco minutinhos, top five, outro primo, uma mão cheia. Seis é metade, meio ano, meia dúzia. Seis graus de separação entre mim e... [+]
Porque sim. Para distrair, passar o tempo, brincar. Inventa, cozinha, conta, escreve, compartilha, mostra aí. Para mostrar coisas que são o que são, mas que podem revelar segredos para quem souber olhar e sentir. Para dar sentido ao mil-folhas de alegrias, desassossegos, intimidades e acontecimentos indizíveis. Para esquecer. De todos os portos, daqueles braços, dos arrozes insossos, dos bolos solados. A gente não se esquece de nada não, a gente se acostuma, como diz o Jacques Brel. Por costume. Como... [+]
Basta ferver a água com sal e manteiga, adicionar leite, misturar o conteúdo do pacote e deixar descansar por meio minuto. Nada de escolher, cozinhar e descascar as batatas (a ordem ao gosto do freguês), passar pelo espremedor, juntar a quantidade desejada de manteiga e/ou leite, temperar, garantir que chegue quente à mesa, sujar louça, respingar fogão, pelar os dedos. Tudo muito rápido, tudo muito simples, tudo muito garantido. Só que não. Apesar de ter lido as instruções, consegui errar... [+]
A depender do interlocutor, “Cozinha pra mim?” tem o efeito de um “Me beija!“. Um pedido assim é promessa de preguiça, samba e amor até mais tarde, ou o interlúdio que sucede algumas horas no computador para terminar um trabalho, responder os correios, buscar aquela música do fim do século passado, pagar as contas… e precede o dobro dessa quantidade de horas numa soneca de pernas enroscadas em tarde de canícula que não suporta mais do que uma salada. Um... [+]
– Ça va, ma jolie cusinière? – Tô triste, Suíço. – Vem pra cá! – Ó que eu vou… – Ouiiiii!! Chego duas semanas depois dessa conversa pelo Skype meio em frangalhos, com alguns planos, casacos e biquíni (porque o tempo era incerto), cachaça e suco de maracujá na bagagem conforme o pedido. Os frangalhos, aquela troca de casca anual e necessária mas nem por isso confortável, começam a cair já pela janela do trem que passa ao redor do... [+]
Tínhamos 15 e 16. Casamento da irmã mais velha dele, família por todo o lado. Vó Meloca esqueceu uma calçola-barraca-dupla no quarto, o tio pendurou no lustre, a véia procurando a casa toda sem querer dizer o quê e a gente rindo a tarde inteira. Deitamos no tapete da sala, cabeça com cabeça, enquanto todos corriam pra lá e pra cá entre vestidos e ternos e cheiro de laquê e sapatos novos. – A gente devia era ficar solteiro pra... [+]
Ele gostava das minhas pernas. Talvez ainda goste e prefira como elas estão hoje, não importa. Me gostava inteira e dizia. Dou um meio sorriso ao abrir a despensa e a geladeira, tem algo dele ali. Sempre tem. Numa passada de olhos pelas embalagens de azeite, granola, mel, arroz, café e torradas, lembro dele e lembro de algum outro. Vão-se os amores e aquela história toda… ficam os sabores e o consumo da geleia X porque gosto do vidro e... [+]
Quando cozinho ainda me acontecem coisas que não me acontecem quando não cozinho. Por mais sumida que andasse, dava sempre um jeito de fazer um chamego no Fogão. Comprei um acessório de moer que se encaixa na batedeira e desembestei a fazer aquele ragú di carni que aprendi na Toscana, hambúrguer caseiro, inúmeras versões de quibe cru e cozido, rolos e bolinhos de peixe… Uma belezinha, peguei amor, nem ligo de ter de lavar o traste depois, não vivo mais... [+]
No meu entendimento, cozinhar com a vó – própria ou alheia – é sempre uma dádiva, um privilégio. São algumas horas (porque comida de vó não se faz em 15 minutos) ali, trocando receitas, ouvindo e contando causos, tentando absorver de alguma forma toda aquela sapiência que só os anos da delicadeza oferece. Delicadeza e impertinência, que se vocês se tornarem íntimas o suficiente logo aparecem a audição seletiva, a teimosia, uma que outra bronca dirigida a você ou a... [+]
Há mais ou menos um ano, surpresos com a notícia e tristes por não estarem pessoalmente ao meu lado, pai e mãe ouviram o que cabia contar do episódio e, no lugar de opiniões e conjecturas, emitiram um conselho que virou um lema, quase um mantra: “Filha, cuida de ti.” Fui pro Rio-de-Janeiro-gosto-de-você algumas vezes depois disso. Dancei, tomei banho de mar, andei pela areia e vi aquele por do sol, brega de tão lindo, sentada na pedra. Redescobri São... [+]