Morava numa cidade onde havia, em quase todo bairro, um indiano em cada esquina, indiano servindo para designar desde lojinhas de conveniência que vendiam leite com prazo de validade vencido, até portinhas quase suspeitas que entregavam fumegantes e aromáticas refeições em embalagens de alumínio, passando pelos movimentados restaurantes de paredes vermelhas com garçons de reluzentes cabelos negros e profundos olhos amendoados. Variados foram os momentos felizes que tiveram o aroma das especiarias indianas como pano de fundo. No indiano da esquina dava um pulo naquelas... [+]
Tio Herbert, o Réba, costumava nos saudar em alemão. Perguntava se estava tudo bem – Alles gut?? – e os sobrinhos-netos respondiam, assim que aprendiam a falar, que estava tudo azul – Alles blau, Réba!!! Para chegar na casa do Réba e da Dada, bastava atravessar a rua, ao lado da ponte sobre o rio que passa ao lado da casa da mãe. Rio esse que transbordava com vontade a cada chuva mais intensa, como aquela de 83, que desabrigou e flagelou muita... [+]
Sorrio um sorriso quase sinistro toda vez que leio esses versinhos. Penso que algum cozinheiro-mor está a reger o mundo, em seu avental salpicado de farinha, colher-de-pau e fouet em punho quando, ao tentar fechar a gaveta dos talheres com um golpe de quadril, esbarra na bolsa, bate a cabeça nas panelas penduradas e lança o dólar pelos ares… Em tradução livre, desimpedida, sem rima e com muito menos charme, as palavras do francês ficariam assim: Um cozinheiro, quando janto/ Parece-me um ser... [+]
Torradeiras me lembram a Dona Gerda. Ela usava um exemplar de linhas retas, bege, onde cabiam confortavelmente seis metades de pão francês (nem por nada consigo me lembrar da marca, adoraria encontrá-la novamente, mesmo que numa foto). Caso algum conviva desejasse uma torrada mal-passada, podia resgatá-la antes dela pular usando uma pinça que mais parecia dois garfos, com três dentes cada, entrelaçados feito namorados. Os lanches e cafés-da-manhã eram sempre sortidos na casa da Dona Gerda. Sortidos e perfumados pela... [+]
O macarrão ficou duro demais e o hamburguinho caseiro ficou desabrido, sem sal nem gosto. Gostoso mesmo só o brócolis, assustado em alho e óleo. Há dias assim mesmo, em que até o mais dadivoso dos cozinheiros se distrai, erra na mão, nos tempos e nos temperos, desaprende o que parecia estar tatuado no DNA, escorrega até em fervura de água. E o brócolis, tão querido e verdolengo, apareceu todo cheio de sabor e autoridade vegetal para avisar que essas coisas são assim mesmo,... [+]
Que a dadivosice corre no sangue da família, a Leitora e o Leitor queridos já devem ter se dado conta. São tantas influências deliciosas, tantas pessoas que me fizeram gostar de cozinhar (muito embora não seja lá nenhuma especialista e tenha meus dias de gororoba) que às vezes vem a sensação de que não vou conseguir dar o devido crédito a todas elas enquanto viver. Dadivosa pra lá de enrustida, Ti’mara – ou Tia Mara, ou Marinha – teima em dizer... [+]
Um dia ainda hei de ter a pachorra de listar as façanhas culinárias de maman. Algumas não são lá muito gloriosas, como a fuzarca de louças, panelas, facas, talheres e cascas que fica a pia ao término da cozinhança, o caos organizado da geladeira ou aquela história do caldo de peixe sem peixe que volta e meia o tio reconta. Mas a mãe tem assim um jeito de cozinhar inimitável e delicioso, com pratos e proezas de se tirar o... [+]
Pode-se classificar a família entre os espirituosos e os incautos, sendo os primeiros bastante mais numerosos e despachados. São também os primeiros a refutar e depois propagar pelo mundo afora as Teorias de Maman. Algumas envolvem comida, como a afirmação de que da cebola deve-se cortar as pontas e pelo menos duas camadas depois da casca e tirar o miolo para que não deixe gosto ardido na comida (desperdiça que é uma barbaridade, mas desde que me conheço por gente... [+]
De origem alemã, esse bolo-pão com cobertura doce é muito apreciado no Sul do Brasil, onde recebe a alcunha de cuca (ao que tudo indica, uma corruptela de ‘kuchen’). De origem alemã também era a Vó Nair, exímia fazedora de variadas e aromáticas cucas atraidoras de visitas para o café no meio da tarde. Às vezes ela me deixava descascar, picar e passar em açúcar e canela as bananas da cobertura enquanto preparava a massa úmida. Por maior que fosse a quantidade... [+]
De cintura larga, cabelos até a cintura, saia até o joelho, decote até o pescoço, rosto apagado e sobrancelhas revoltas, Maria Arlete não assistia à televisão, não ouvia rádio, fazia questão de deixar bem claro que ‘não era de desfrutes’. Vi uma foto dela comigo, eu devia de ter uns dois, três anos. Ela ajudava na limpeza da casa da mãe. Por debaixo da casca estudadamente pudica, tinha duas grandes taras, por assim dizer: sabonete Francis e pudim de leite.... [+]