Tu me sabes…

– Tu me sabes.

– É, eu te sei.

(A gente se sabe e,  no momento, não careço de mais nada.)

Não é sempre que nos vemos, mas cada vez – como se fosse a derradeira, e um dia ela chega! –  é gostoso como sempre foi, como dar boa noite e bom dia num espaço de 3 horas, como aliviar a tensão de um dia esquisito ou dividir pequenas alegrias, partilhar segredos, receitas e planos, ganhar e dar colo, fazer macarrãozinho com manteiga e parmesão, passar um café, olhar os livros trazidos da viagem, sussurrar palavras doces e chulas e bobagens e grandes questões da humanidade, o vazio do universo e o espaço infinito…

Pouco se me dá se não temos um do outro toda a atenção do mundo, se não somos vistos passeando de mãos dadas pela praça e que nossa história seja mais bem privada e não tenha um nome certo.  Ela é escrita a lápis, como as últimas receitas que registrei no caderno novo, em meio às incertezas que acolhi e respeito como parte da vida impermanente. Importa mesmo é se saber desse jeito e sentir juntos o aquecer e arrefecer das poucas e sempre últimas horas.

Não há poder, nem comando, nem chefia, nem submissão.  Também não há contrato. Ele não é só meu. Não sou só dele. Saio por aí, passo horas envolvida em outros temas, esticando-me, dobrando-me e permanecendo nas pontas dos pés sob a mira daqueles espelhos todos. Saio pra jantar longe dele, na maioria das vezes. Diz ele que tem ciúmes, eu rio e faço de conta que acredito.

Fosse um moço, não seria alto nem baixo demais, magro nem gordo demais. Misturado ao povaréu de São Paulo, andaria com as costas eretas, príncipe desencanado de camisa xadrez, calça jeans, tênis e uma barba de três dias.

Mas ele não é gente.  Não é gente, tampouco coisa, embora às vezes brinquemos que somos objeto um do outro.  Ele está mais para… por falta de palavra melhor… um signo, uma representação, um tema, uma ideia, vá lá…

Não se pode ter ciúmes de uma cozinheira eventual. Sobretudo esta, sobretudo por nos sabermos assim.  E se cuando cocino me pasan cosas, é sempre diante de ti e de tuas distintas materializações que elas acontecem, na minha casa e na de outrem. Sou feliz ao teu lado, fazendo sopa ou assando um bolo e nessas horas não careço de mais nada. Conheço tuas manhas e bocas, gosto do teu cheiro e sinto tua presença ao virar-me de costas, de avental e vestido. E tu me sabes como ninguém mais, Fogão.



5 comentários em “Tu me sabes…

  1. Graça

    Lindo lindo este texto. Do princípio ao fim, tão intenso, tão ligado como eu ao meu fogão e ao meu homem 🙂

    Parabéns pela criatividade

    Responder
  2. Graça

    Fico sempre atenta para ver quando há novas entradas…aguardo as receitas e os textos com impaciência depois da primeira incursão que me deixou rendida..

    Bjos gds

    Responder

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