Cansam-me sobremaneira certas interações do cotidiano doméstico. Contrataria imediatamente um serviço que me entrevistasse uma única vez e desse conta de minhas preferências e necessidades domésticas, desde que eu não precisasse “interagir”. Seria uma espécie de agência de serviços do lar, com um bom acordo de nível de serviço, idoneidade e capricho acima de qualquer suspeita. A comunicação com a Central, quando necessária, poderia ser feita por e-mail, SMS, telefone ou programas de mensagem instantânea e as tarefas ocorreriam no período... [+]
Já ouvi dizer que botar sal demais na comida é sinal de cozinheira apaixonada. Discordo, pois acho que o enamoramento (seja ela por gente, bicho, coisa ou comida) é potencializador de sensibilidade, não combina com comida salgada demais. Há que diga que a paixão embota os sentidos, eu acredito que os aviva e revigora. Um coração poeirento necessita de muito tempero para acordar, ao passo que um amor à flor da pele faz acender na língua o mais ínfimo grânulo da flor do sal. João... [+]
Acho que foi no Chucrute com Salsicha que li pela primeira vez sobre minha escritora de comida favorita, a M.F.K. Fisher. Se não foi, ficará sendo, pois toda vez que leio algo sobre ela, é da Fer que me lembro. Fisher fala de amor e de comida, da mistura dos dois e de suas implicações. Concordo com muitas das visões dela sobre esses assuntos e chego a reler diversas vezes o mesmo parágrafo, ora rindo e balançando a cabeça, ora com... [+]
Cozinhar tem o poder de provocar-me a perda da noção do tempo. Um bolinho para bater, um ramo de alecrim, uma vulgar pitada de sal e sou facilmente transportada para outras dimensões. Sinto-me como a criança que brinca sem notar que escureceu, como o velho que joga dominó na praça até que sua véia venha lhe buscar chacoalhando o rolo de macarrão, ou como aquela moça que dança sozinha na festa, de olhos fechados, alheia ao sol que chega e aos poucos viventes que a observam.... [+]
O Vô Juju, pai do pai, criava uns passarinhos em casa. Manons, bicos-de-lacre, canários-do-reino, curiós, acho. Lembro-me muito bem da lata marrom de pomada que ele passava nas patinhas deles, do anel de marcação que punha com cuidado nos “tornozelos” e da papinha que fazia para dar na boca dos filhotes (ou dos doentes, não sei ao certo). A mesma paciência que tinha com os passarinhos, tinha com a madeira. Eu devia ter uns sete, oito anos quando ele fez aqueles mágicos carrinhos de boneca... [+]
Cresci comendo muita banana, de tudo quanto era jeito: pura, amassadinha, com açúcar e canela, na massa de pastel, frita, no bolinho, na cuca, na torta, em sobremesa, com arroz e feijão, no sanduíche, assada, na farofa, na vitamina, cozida, na mamadeira… Hoje me dou conta de que ela participou de minha vida, companheira e sempre disponível desde a mais tenra idade. Faz parte da cultura culinária da família e, para mim, guarda uma associação muito forte com a Vó... [+]
O tio Ricardo morou lá em casa por um tempo e de tão próximo virou uma espécie de irmão mais velho, depois amigo íntimo. Não são todas as pessoas que têm o privilégio de ter um tio como amigo de verdade, arrisco dizer. Surpreende-me que seja uma coisa recíproca, pois ele precisou de uma paciência de Jó para nos aturar, quatro crionças de zero a cinco anos, até que virássemos “gente”. Só mesmo ele para agüentar as pestinhas e ainda... [+]
Não existo sem antes sorver um canecão de café preto. É um prazer inenarrável ao qual me dedico todas as manhãs. E o ritual fica ainda mais gostoso quando passo o café na hora, direto para dentro de uma das minhas canecas preferidas. Com as constantes mudanças, algumas quebraram-se, outras decidiram por ficar onde estavam. É que às vezes, ao contrário de mim, elas criam raízes, apegam-se aos lugares e não arredam o pé, digo, a asa. As mais queridas de todas... [+]
Possuo toda uma carga genética culinária, uma herança dadivosa que me chegou por parte de mãe e de pai. São avós, pais e tios, homens e mulheres de toda a sorte de personalidade e interesses. Mas enxergo na maioria deles uma forte relação com o mundo da comida. Afinal, segundo o ditado, o sapateiro olha pro sapato! Começo a suspeitar que esse gene tem o poder de se fortalecer a cada grau de descendência, principalmente nos homens. E é sobre eles, os... [+]
Não lembro mais onde li que as línguas faladas nos lugares mais quentes da terra tendem a apresentar muitas vogais. Lenda ou não, acredito de verdade que essas cinco letrinhas conferem cor e alegria ao falar. Foi pensando nisso que me dei conta, enquanto picava as abobrinhas, de que a palavra ratatouille tem todas as vogais dentro dela! Vai ver é por isso que cor e alegria não faltam a essa receita, que tem verde, tem branco, tem vermelho, tem amarelo, tem... [+]