A 16 minutos de caminhada do cais do Porto Velho de Marselha, no restaurante La Maison Dorée, o chef Charles Meynier criou, em 1880, a receita de tapenade – uma pasta de azeitonas e alcaparras – para rechear ovos cozidos, servidos às metades.
O mesmo cais do porto, em 1834, viu chegar a epidemia de cólera no coração da cidade. Havia sido um ano de seca. O rio Jarret, única fonte de água potável da cidade, virou um fiapinho, rendendo apenas um litro de água por pessoa por dia – e piorando assim o alastramento da doença que levou embora cerca de 100 mil franceses.
Um deles, ora vejam, foi outro Charles Meynier, pintor neoclássico parisiense, que sucumbiu em 1832.
Na Paris de 1832, a epidemia deixara as ruas desertas. Lojas fechadas. Restaurantes, bares, cafés em suspenso diante do tal medo azul, “La Peur Bleue”. Azul pela cianose decorrente da violenta desidratação causada pela bactéria à época desconhecida pela ciência.
“…tinha o pulso tênue, a respiração rascante e os suores pálidos dos moribundos” – escreve Gabriel García Márquez em O amor nos tempos do cólera. “Mas o exame revelou que não tinha febre, nem dor em nenhuma parte, e a única coisa que sentia de concreto era uma necessidade urgente de morrer. Bastou ao médico um interrogatório insidioso, primeiro a ele e depois à mãe, para comprovar uma vez mais que os sintomas do amor são os mesmos do cólera.” Trânsito Ariza, mãe do apaixonado Florentino, confortou-o: “Aproveite agora que você é jovem para sofrer o mais que puder (…) que essas coisas não duram toda a vida.”
Mal de amor e cólera não duram toda a vida. Com frequência, dão lugar a algo de melhor.
Em Marselha, a crise causada pela epidemia levou a prefeitura a não medir esforços para melhorar o abastecimento de água. Construiu-se, ao longo de 15 anos, um canal de 80 quilômetros para trazer água do rio Durance até a cidade, que viu o abastecimento per capita se multiplicar: eram 370 litros por dia em 1876.
Em Paris, abriram-se ruas e passagens, criou-se finalmente um sistema de esgoto e abastecimento de água, plantaram-se muitas das árvores que ainda hoje embonitam a cidade.
Quanto ao Florentino Ariza, como já se sabe nas primeiras páginas do livro, reencontrou seu amor após esperar “cinquenta e três anos, sete meses e onze dias”.
Estamos em 2020, ano em que uma pandemia – desta vez causada por um vírus – deixou em São Paulo as ruas desertas, lojas fechadas. Restaurantes, bares, cafés em suspenso. Estamos, pelo menos aqui em casa, em isolamento preventivo desde o dia 13 de março.
E no quinto dia de quarentena, após inventariar toda e qualquer embalagem da despensa e esquadrinhar cada rincão da geladeira, fiz uma tapenade. Sem ter consciência do tanto de significado que ela poderia carregar, mas certa de que foi a cozinha me avisando: essa coisa não dura toda a vida.
E tudo vai melhorar.
Receita de Tapenade de Azeitonas
São muitas as receitas possíveis de tapenade, que tem esse nome porque tapenas, ou tapena, significa alcaparras na língua occitana – em perigo de extinção mas ainda falada no Sul da França, no Piemonte e Norte da Espanha.
A fórmula original do chef Meynier foi simplificada e modificada ao longo do tempo. A Larousse Gastronomique tem um preparo que leva anchovas, atum, alcaparras, suco de limão, azeite. Diz que às vezes vai mostarda, alho, tomilho, louro.
Com azeitonas verdes, pretas ou as duas, pode ainda ser enriquecida com amêndoas. Sempre no pilão, dizem os puristas.
Fiz a minha com base na receita da chef americana Alice Waters, dona e proprietária do restaurante Chez Panisse, na Califórnia – fechado, pelo mesmo motivo que nós aqui, desde o dia 16 de março (por enquanto).
Omiti as anchovas, usei o que tinha na despensa.
Tapenade de Azeitonas
Ingredientes:
- 1 xícara de azeitonas pretas e verdes descaroçadas e picadas bem miudinho
- 1 dente de alho descascado e picado na ponta da faca ou esmagado no pilão
- 1 colher de sopa de salsa picada
- 1 colher de sopa de alcaparras picadas
- 1 pitada de pimenta calabresa seca
- ½ colher de chá de uísque (pode usar conhaque, cachaça ou mesmo nada)
- ½ xícara de azeite de oliva
Como fazer:
- Misture todos os ingredientes. Não precisa acrescentar sal. Sirva em temperatura ambiente. Experimente pura, numa fatia de pão tostado. Depois trate-a não apenas como pastinha, mas condimento. Use para reavivar um molho de tomate. Rechear abobrinha. Finalizar uma polenta. Fazer um salgadinho com massa folhada.
Como descaroçar azeitonas
Se você só tiver azeitonas sem caroço, passe-as na água antes para retirar o excesso de salmoura. Gosto sempre mais das azeitonas inteiras, o sabor fica preservado.
Como vamos picar tudo bem miúdo, a forma como você vai descaroçar as azeitonas não importa tanto. E mais importante: não precisa de descaroçador ou qualquer outro equipamento.
Você pode fazer de pelo menos dois jeitos bem simples
- Com uma faquinha pequena, vá cortando lascas da azeitona, rente ao caroço.
- Com a lateral de uma facona grande, esmague a azeitona e retire o caroço.
Caramba, que texto delicioso! Eu sempre quis fazer tapenade de azeitonas, mas sempre fico meio com preguiça de gastar tantas azeitonas do mesmo jeito… hehehe
Agora, parece que é melhor eu fazer logo, antes que morra sem provar dessa receita!
Oi, Thais!
Não é gastar não! É valorizar as bichinhas. Vai por mim. Um beijo ;***
Não fiz a receita ainda, mas adorei a história e seu site.
Com ctz farei o Tapenade ainda essa semana.
Oba!
Depois me conta como ficou, Luciana
Um beijo!
Eu adorei o texto , fiquei encantada !! Minha neta Olívia vai nascer agora em Dezembro e com ela nasce a vontade de escrever um livro de receitas, pois adoro cozinhar . Receitas fáceis e deliciosas . Vou fazer o chá de fraldas dela e vai ser um Drive tru por causa da Pandemia , minha consogra e eu vamos dar uma sacolinha recheada de coisas gostosas para as convidadas e uma das guloseimas será um vidro de tapenade de azeitonas em homenagem a Olívia minha neta !!! Obrigada por está receita !!! Vou acrescentar um tempero … muito Amor ? Bjos no coração ?
Ednara, só agora vi sua mensagem. Espero que a Olívia tenha chegado com muita saúde para iluminar a vida de todos vocês. Um grande beijo e obrigada por esta mensagem tão querida!
Que delícia de ler e de comer! Essa semana é tudo que quero! ❤️
Texto lindo, delicioso de ler!!! Agora só resta fazer essa delícia. Grata!
Fiquei encantada com seu texto. Inclusive pq já li “O amor nos tempos do cólera”. Obrigada por nos presentear com receitas tão bem contadas . Rs. Grande abraço 🌸
Linda história, tão própria para esses tempos de pandemias, que estamos enfrentando. Receita perfeita para minha ceia de Natal. Obrigada.
Obrigada por partilhar essa receita maravilhosa. Já fiz e refiz várias vezes. E o texto? Forte, carregado de tragédia, mas inacreditavelmente, leve de se ler. Todo sentimento, em cada palavra.
Olá pessoal
Eu faço uma quase igual, com os mesmo ingredientes da sua receita,só que acrescento um punhado de nozes bem picadinhas…
Fica perfeita que nem a sua.
Experimente tb.
Bjsss
Como você previu no seu texto “tudo vai melhorar”. E aqui estamos nós pós pandemia. Seu texto me inspirou, fiquei com vontade de reler “o amor nos tempos do cólera” e ainda convidar uns amigos pra se deliciar com comidinhas
afins.
um beijo e obrigada pelo texto inspirado
Só agora,descobri sua página , esse belo texto e acompanhado dessa deliciosa receita, q será feita essa semana p degustar nesse feriado de Corpus Christ . Obrigada pela sua generosidade e compartilhar.
Cheguei aqui pelo pinterest. Não fiz a receita, mas amei a forma como traz em seu blog. O comer tem esse papel de nos conectar com tempos e lugares diferentes e trazer essa história junto com a receita é todo um diferencial.
Adorei a maneira de apresentar a receita! Fui imaginando. Obrigada !!!
Agradeço esta sua publicação na íntegra, um encanto! Tornou o meu dia mais feliz.
Muito parabéns pelo texto tão cheio de histórias, que marcaram séculos, e se repetiram em outras épocas ainda vivenciada por nós. Não fiz a receita ainda, mas a mesma me estimulou a valorizar ainda mais seu talento. 👏🏻
Estou lendo hj. Com 3 anos de atraso.
Obrigada por dividir conhecimento.
Vou ler O Amor nos Tempos do Cólera,, pretendo visitar o Chez Panisse e, certamente vou coer muitas torradinhas com essa Tapenade.
Pretendo colocar anchovas em alguma versão.
Adorei todas as dicas.