Utensílios afiados, apetrechos para medir, ingredientes que preenchem muitas e coloridas prateleiras, olhos bem treinados, mãos ágeis e ao mesmo tempo cuidadosas, um pouco marcadas por uma espetada aqui e uma queimadura acolá, a obra que toma corpo no calor de muitos graus e uma assinatura inconfundível e despretensiosamente aplicada. Sempre falo que o sapateiro olha pro sapato, expressão que ouvi pela primeira vez em resposta ladina e desconcertante do namorico de uma prima quando ela, baixinho e com as... [+]
Bati este bolinho com a mãe durante minhas semiférias, numa tarde de muito calor. Trata-se de um clássico que não pode faltar na praia desde que me entendo por gente, pois a Vó sempre o fazia à tarde, para comermos quando chegávamos com aquela fome acumulada de horas debaixo do sol e dentro do mar. Tentarei detalhar ao máximo o processo, os ingredientes, temperaturas, seqüência e truques de forma que o Leitor e a Leitora possam reproduzir em seus próprios lares esta receita... [+]
Acordo antes e sem fome, às vezes acontece. Chove uma mistura de água e gelo, começo a ler um livro de trás para a frente que mata, ao mesmo tempo, duas fomes de aprender. É uma pequena antologia literária dedicada à gastronomia e está em francês. Na página 613, as madeleines de Marcel Proust. Mais comentado do que lido, o texto é mesmo um primor. O bolinho em forma de concha, molhado no chá de tília, transporta o autor para... [+]
Quando 2013 for apenas mais um objeto obscuro e obsoleto nas já despencantes prateleiras da memória, quando eu soprar os números entalhados na madeira e alisar a superfície na tentativa de lembrar o que aconteceu naqueles dias, terei ao menos a certeza de que foi um ano bom. Se o retrasado foi metade desassossego e metade gratidão, se o passado foi metade perder e metade encontrar o prumo, o ano que acaba hoje foi metade na cozinha de casa (a... [+]
O que veio antes: o ovo de gema mole que o Babbo fazia no meio da tarde fria ou a galinha que a vó Nair matava torcendo o pescoço com seus dedos compridos? O interesse pelos livros de comida ou as horas copiando receitas antes mesmo de saber escrever direito? A necessidade de escrever? Ou foi a vontade de cozinhar? A fome vem antes ou depois da vontade de comer? A lembrança de alguém chega antes de querer esse alguém... [+]
Dobrei o cantinho da página 184 de The Favorite Game, do Leonard Cohen – pausa para longo suspiro ao lembrar do show dele, presente-surpresa. Ele raramente fala de comida, mas menciona os jantares que o protagonista Lawrence dividia com Shell. Descreve a mesa posta, a luz de velas e “A comida elaborada que os amantes cozinham um para o outro, cozida no vinho e presa por palitos de dente.” E fala que também tem os hilários banquetes matinais feitos com... [+]
Um é o cara. O primeiro, o único, o melhor. O mais solitário, um café e a conta, a saideira. Dois é casal, parzinho, duo, díptico, dupla, olhos, orelhas, mãos, pernas. Três é realeza, triunvirato, número primo, tríade, trindade, pai-filho-espírito-santo, sangue-suor-e-lágrimas. Quatro é marcação de tempo, estações, cantos do mundo, patas, apoio. Cinco é redondo, só mais cinco minutinhos, top five, outro primo, uma mão cheia. Seis é metade, meio ano, meia dúzia. Seis graus de separação entre mim e... [+]
Porque sim. Para distrair, passar o tempo, brincar. Inventa, cozinha, conta, escreve, compartilha, mostra aí. Para mostrar coisas que são o que são, mas que podem revelar segredos para quem souber olhar e sentir. Para dar sentido ao mil-folhas de alegrias, desassossegos, intimidades e acontecimentos indizíveis. Para esquecer. De todos os portos, daqueles braços, dos arrozes insossos, dos bolos solados. A gente não se esquece de nada não, a gente se acostuma, como diz o Jacques Brel. Por costume. Como... [+]
A depender do interlocutor, “Cozinha pra mim?” tem o efeito de um “Me beija!“. Um pedido assim é promessa de preguiça, samba e amor até mais tarde, ou o interlúdio que sucede algumas horas no computador para terminar um trabalho, responder os correios, buscar aquela música do fim do século passado, pagar as contas… e precede o dobro dessa quantidade de horas numa soneca de pernas enroscadas em tarde de canícula que não suporta mais do que uma salada. Um... [+]
– Ça va, ma jolie cusinière? – Tô triste, Suíço. – Vem pra cá! – Ó que eu vou… – Ouiiiii!! Chego duas semanas depois dessa conversa pelo Skype meio em frangalhos, com alguns planos, casacos e biquíni (porque o tempo era incerto), cachaça e suco de maracujá na bagagem conforme o pedido. Os frangalhos, aquela troca de casca anual e necessária mas nem por isso confortável, começam a cair já pela janela do trem que passa ao redor do... [+]