Aos domingos, nem todos, nem sempre, Dinah fazia macarrão, que abria com um rolo fino e comprido como cabo de vassoura (acho que era mesmo um). Uma versão miniatura do mesmo cabo era entregue à neta-grudinho. Além do tamanho, algo mais o diferenciava da versão adulta: dois delineados perfeitos 50 à guisa de olhos, dois pontinhos para formar o nariz e um coração esmagado para ostentar uma boca larga, sinuosa, mezzo Oscar Niemeyer, mezzo Carmem Miranda. Às mãos da pequena... [+]
Ela sente o desabraço do mundo. Evita ler acontecências (notícia boa não é notícia, dizem). Atravessa na faixa, coloca seis strelítzias no vaso de plástico, põe-se a preparar um gazpacho. De avental apertado na cintura é dona e proprietária de cada ínfimo acontecimento do ninho, protegida de um lá fora que arde em juízo, sombra e tirania. Porque avental é guarida. E fazer comida sempre, sempre, sempre será restauro. Por isso, feito Zymborska, pede desculpas ao tempo pelo tanto de... [+]
Utensílios afiados, apetrechos para medir, ingredientes que preenchem muitas e coloridas prateleiras, olhos bem treinados, mãos ágeis e ao mesmo tempo cuidadosas, um pouco marcadas por uma espetada aqui e uma queimadura acolá, a obra que toma corpo no calor de muitos graus e uma assinatura inconfundível e despretensiosamente aplicada. Sempre falo que o sapateiro olha pro sapato, expressão que ouvi pela primeira vez em resposta ladina e desconcertante do namorico de uma prima quando ela, baixinho e com as... [+]
São Paulo, 5 de novembro de 2017. Tatuzinha, Acredito no poder de uma refeição compartilhada. Principalmente quando à mesa assuntam três mulheres. E mais ainda quando a de nove anos polvilha a conversa com glitter dourado, a vida das baleias e a importância de tentarmos não consumir coisas carregadas de escravidão, plásticos e venenos. Acredito também que criar pode ser mais prazeroso do que consumir. Que a comida pode ser mais gostosa quando a gente cozinha. “Estudos apontam” – é... [+]
Bati este bolinho com a mãe durante minhas semiférias, numa tarde de muito calor. Trata-se de um clássico que não pode faltar na praia desde que me entendo por gente, pois a Vó sempre o fazia à tarde, para comermos quando chegávamos com aquela fome acumulada de horas debaixo do sol e dentro do mar. Tentarei detalhar ao máximo o processo, os ingredientes, temperaturas, seqüência e truques de forma que o Leitor e a Leitora possam reproduzir em seus próprios lares esta receita... [+]
Quando eu era velha, ganhava medalhas e certificados de primeira aluna da classe. O boletim estrelado não era fruto de muito estudo e dedicação, preciso esclarecer, mas de uma certa tendência a não me distrair com facilidade como acontecia com as demais crianças. Eu tinha uma concentração de gente velha. Prestava atenção na aula, fazia as tarefas de casa e sobrava mais tempo para brincar. E ler, fazer tricô, crochê, cozinhar. Porque eu era uma criança velha, uma criança-velha, uma menina-vó. ... [+]
Acordo antes e sem fome, às vezes acontece. Chove uma mistura de água e gelo, começo a ler um livro de trás para a frente que mata, ao mesmo tempo, duas fomes de aprender. É uma pequena antologia literária dedicada à gastronomia e está em francês. Na página 613, as madeleines de Marcel Proust. Mais comentado do que lido, o texto é mesmo um primor. O bolinho em forma de concha, molhado no chá de tília, transporta o autor para... [+]
Quando 2013 for apenas mais um objeto obscuro e obsoleto nas já despencantes prateleiras da memória, quando eu soprar os números entalhados na madeira e alisar a superfície na tentativa de lembrar o que aconteceu naqueles dias, terei ao menos a certeza de que foi um ano bom. Se o retrasado foi metade desassossego e metade gratidão, se o passado foi metade perder e metade encontrar o prumo, o ano que acaba hoje foi metade na cozinha de casa (a... [+]
O que veio antes: o ovo de gema mole que o Babbo fazia no meio da tarde fria ou a galinha que a vó Nair matava torcendo o pescoço com seus dedos compridos? O interesse pelos livros de comida ou as horas copiando receitas antes mesmo de saber escrever direito? A necessidade de escrever? Ou foi a vontade de cozinhar? A fome vem antes ou depois da vontade de comer? A lembrança de alguém chega antes de querer esse alguém... [+]
Dobrei o cantinho da página 184 de The Favorite Game, do Leonard Cohen – pausa para longo suspiro ao lembrar do show dele, presente-surpresa. Ele raramente fala de comida, mas menciona os jantares que o protagonista Lawrence dividia com Shell. Descreve a mesa posta, a luz de velas e “A comida elaborada que os amantes cozinham um para o outro, cozida no vinho e presa por palitos de dente.” E fala que também tem os hilários banquetes matinais feitos com... [+]